Pequenos Tiranos
Pequenos Tiranos

 

Pequenos tiranos

Muitas crianças têm seus desejos atendidos pelos pais como se fossem ordens que devem ser cumpridas sem questionamento. A conseqüência é o exercício do poder marcado pela arbitrariedade; sem limites, também não há possibilidade de satisfação

 
 

Eis o conto:

 

CARCAMO

 
 
 

Num reino longínquo, uma rainha desesperava-se por não ter filhos.
– Temos de ter um! Temos de ter um!, gemia o rei. Para quem ficará este soberbo reino que me deixou o meu pai, que o recebeu do seu pai, e assim sucessivamente, desde a criação do primeiro pai sobre a Terra? A quem entregarei a minha coroa quando os meus ossos se tornarem velhos e quebradiços, quando estiver cheio de cabelos brancos e tolhido de reumatismo?
– Que quadro tão terrível da velhice! Mas não deixa de ter razão: precisamos ter uma criança.
A rainha consultou todos os manuais e os médicos mais poderosos e mais sábios. Por fim, graças aos tratamentos, finalmente engravidou.
– Cuidado, este principezinho será seu tesouro, mas não lhe dêem mimo demais. Não tenham pressa em fazer dele um pequeno rei, preveniu o médico, assim que o bebê nasceu.
Mas mal ele virou as costas, a rainha pegou logo o pequeno príncipe e começou a enchê-lo de mimos.
– Tu és o meu reizinho, o meu único rei, e os teus desejos são ordens.
Os pais meteram o menino numa redoma infinitamente preciosa e, todas as manhãs, uma criada diplomada levava-lhe mamadeiras de cristal com leite da melhor qualidade e mel de abelhas raras. Dormia num colchão de pétalas de rosa colhidas na Abissínia exatamente às 5 horas da manhã -– quando estavam mais frescas -– e em lençóis bordados a ouro. Para servir o menino, uma dúzia de criadas corriam de um lado para o outro durante o dia e, à noite, dormiam a seus pés. Estava protegido de tudo: da mais leve brisa, do menor sopro… Para o aquecer, os pais mandaram construir um sol artificial, que não queimava a pele, mas fornecia vitamina D. Foi assim que o garotinho cresceu, tranqüilamente, em silêncio. Seus desejos eram ordens, sempre atendidas prontamente.
No dia em que completou 7 anos, pareceu conveniente aos pais tirar a criança adorada da sua redoma de vidro.
– Meu pequerruchinho, agora já és grande!, disse a mãe, aproximando-se para lhe fazer um carinho.
– Não sou pequerruchinho coisa nenhuma, disse o príncipe com desdém. E se quer me beijar, autorizo que me beije os pés. É o quanto basta.
Depois, dirigiu-se ao pai:
– Ei, velhote, passa para cá a sua coroa!
O rei entregou-lhe a coroa sem dizer uma palavra, porque nunca havia dito “não” ao principezinho, nem quando ele tinha 1 dia, nem quando ele tinha 3 meses. Como proibi-lo então de alguma coisa aos 7 anos? E foi assim que o principezinho se transformou em rei. Um rei tirano de 7 anos e alguns dias. Mandou cortar todas as árvores, porque um dia lhe caiu uma ameixa na cabeça; ordenou que todos os pássaros fossem estrangulados, um a um, porque cantavam de manhã muito cedo e isso atrapalhava seu sono; determinou que sua mãe fosse presa no 749o andar da mais alta das suas torres, porque ela tinha se atrevido a mandá-lo fazer os seus deveres reais. É o que por vezes acontece quando se é criado numa redoma.
O pior é que, apesar dos seus caprichos, ele tinha sempre um rosto infeliz e gritava:
– Sinto-me sozinho! Estou triste! Ninguém gosta de mim!

Trecho de O principezinho tirano, extraído do blog https://geracoesdialogo.wordpress.com

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Michele Roman Faria é psicanalista, doutora em psicologia clínica pela USP e atualmente desenvolve pós-doutorado no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. É autora de Constituição do sujeito e estrutura familiar (Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003) e Introdução à psicanálise de crianças: o lugar dos pais (Hacker Editores, 1998).